quarta-feira, janeiro 04, 2012

Férias e Black Friday

Férias. O objetivo é sempre descansar, mas normalmente duas opções distintas se apresentam: (1) reduzir o ritmo de todas as atividades, incluindo as rotineiras, e descansar descansando; ou (2) aumentar o volume e intensidade daquelas atividades que você não consegue fazer em meio à rotina e descansar cansando. Desta vez, a opção escolhida foi a primeira. Menos leitura e menos escrita, mais tempo para cuidar da base que sustenta a cabeça que está cada vez mais pesada e com cabelos brancos, escolher com cuidado os filmes que se quer ver, dormir até mais tarde, dexiar os poucos pelos revoltos que tenho na face crescerem, consertar uma coisinha aqui e outra ali na casa, ver os gols do brasileirão pelo Youtube, descobrir que o time do Barcelona é realmente foda.

Passamos o Natal e o Ano Novo em Tucson. O primeiro com amigos e o segundo na santa paz do casal. Como programação das férias, também resolvemos conhecer Phoenix, a capital do Arizona e cidade da Bella antes da sua mudança para Forks (os mais atentos já descobriram pelo menos um dos filmes das férias). A exploração da capital iniciou com uma busca impulsiva por picanha, digo, pela churrascaria Fogo de Chão. Convidados por outro casal de amigos brasileiros, subimos no cavalo às 9 da manhã e chegamos em ponto para a abertura da matança, às 11:30. Depois de muito pouca salada, vários suspiros, muitos vazios, incontáveis picanhas e outras iguarias sangrentas, levantamos acampamento à 1:30. Saímos de ladinho com os braços levantados para ver se o ar entrava. Brutal. A segunda etapa, tomara mais civilizada, ainda acontecerá no próximo final de semana, quando tentaremos conhecer outros pontos turísticos de Phoenix.

No entanto, decisão totalmente arbitrária tendo em vista a serenidade das férias, o tema principal escolhido para esse post não são viagens, mas sim um fato occorido em novembro, um elemento cultural dos EUA ainda relativamente estranho à cultura brasileira: o Black Friday. Sem entrar muito em detalhes, o Black Friday é a sexta-feira após o Dia de Ação de Graças, que é o feriado americano mais “família”. Para dar graças à prosperidade, as famílias tentam passar o dia em relativa espiritualidade.  As comidas, apesar de abundantes, tendem a ser bastante simplórias, com sabores e ingredientes ordinários como batata, frutas da estação, pão, e peru. Várias famílias rezam e a troca de presentes é escassa ou inexistente, mantendo o caráter comercial comum a outros feriados (e.g., Natal) à certa distância.

Esta espiritualidade, no entanto, tem sido colocada em cheque pelo Black Friday, o dia de largada para as compras de Natal nos EUA. Em 2010, as lojas mais agressivas abriram às 4 da manhã, o que já é suficiente para fazer muita gente não dormir na noite de Ação de Graças. Neste ano, o demônio tomou conta e a grande maioria abriu à meia-noite do Dia de Ação de Graças, sendo que algumas redes, como o Wal-Mart, disponibilizaram as promoções a partir das 22 hs. Saldao de vendas às 5 da manhã nas Casas Bahia é para os fracos e amadores. Entrar e suceder no Black Friday requer estratégia e profissionalismo. Uma semana antes, as lojas iniciam as campanhas anunciando os produtos em promoção e a hora de abertura das lojas. Com base nos folhetos de ofertas, horário de abertura das lojas e interesses pesoais, os consumidores começam a montar seus complexos planos de logística: vamos para a fila do Wal-Mart às 20h para comprar o Xbox; saímos de lá às 23h e vamos para a Best Buy, que só abre meia-noite e tem a “minha” TV (note que o processo de apropriação já começa antes); feito isso, vamos a Macy’s comprar uma torradeira e casados de inverno.


Wal-Mart minutos antes do início do Black Friday


  Algumas ofertas são fortes mesmo – e.g.,  TV plasma 42” por U$200 - e instigam até mesmos os consumidores mais controlados (eu). Mas, quando estes consumidores controlados resolvem ceder as tentações e cogitar a possibilidade de ir para a fila por volta das 18h - o que significaria 6 horas de espera munido de livro, computador, chimarrão e lanche – as fontes oficiais de informação mostram que é melhor não se meter com os profissionais do consumo: os americanos. O noticiário local entrevistou gente na fila pela tal TV na terça-feira (lembre que a loja abriria apenas de quinta para sexta-feira). Este cidadão, que por uma ironia tinha poucos dentes, provavelmente está desempregado e disse ao jornalista “I came for my TV”, estava no campo de batalha 3 dias antes da abertura da loja com todo aparato de camping que um bom americano dispõe! Impossível competir...  Sibele e eu passamos na frente desta rede de lojas que oferecia a tal TV um pouco antes da abertura das portas. Além de barracas de 4-6 pessoas, vimos gente com mesa dobrável de 8 cadeiras tendo a ceia de Ação de Graças na fila do Black Friday.Toda essa logística implica necessariamente na redução do tempo de Ação de Graças de muitas famílias, cujo horário de término passa a ter um limite imposto pelo início da “procissão” pagã do Black Friday. A procissão transforma a madrugada em dia: as ruas ficam cheias, os estacionamentos sem vagas e as filas dão voltas na loja. Algumas pessoas chegam a alugar SUVs para conseguir transportar todas as compras.

No Wal-Mart, nosso ponto escolhido para experenciar o fenômeno, os produtos foram espalhadas em ilhas e os consumidores podiam esperar dentro da loja em volta dessas ilhas. Enquanto cercavam as ilhas, a ansiedade dos consumidores perante a possibilidade de outra pessoa pegar o desejado produto era perceptível. Fingindo estar relaxados e fazendo comentários humorísticos com os então inimigos, eles pré-possuiam suas câmeras Nikon ou seus aparelhos de Blue-ray enquanto “gentilmente” expandiam seus corpos para guardar seus pontos privilegiados. Alguns nem respiravam para não reduzir a caixa toráxica. A maior fila do Wal-Mart iniciava no meio da loja e ia em direção às carnes, que fica em um dos extremos do ambiente. “Que picanha deve ser esta meu Deus?” , pensei. Na verdade, era o Nintendo Blue. Ainda no Wal-Mart, presenciamos adultos com 3 carrinhos enfileirados de compras, parecendo uma locomotiva. Um adulto da família ficava no primeiro vagão dando a direção e o outro ficava atrás, colocando força no motor para levar a família de uma ilha de promoção a outra ou ao caixa, onde efeturariam o pagamento para rapidamente ir à próxima trincheira da guerra. E as crianças? Pais colocavam as crianças (outro objeto?) dentro dos carrinhos junto com TV, liquidificador e Blue-ray, tanto com o intuito de não perdê-las quanto para se locomovorem mais rapidamente no campo de batalha. Afinal, o sucesso da próxima compra depende dos segundos economizados com as anteriores.

Possuída?

O movimento vai gradualmente diminuindo ao longo do dia, com famílias voltando pra casa com o sentimento de economia (?!). Entretanto, o Black Friday segue fazendo parte das conversas pelos próximos dias. Pessoas compartilham suas aventuras de consumo enquanto fazem espaço nas suas casas a fim de acomodar suas recentes aquisições, o que pode requerer a transferência de outros objetos para garagens alugadas (ver abaixo). Em um país dito em crise, eventos como o Black Friday sugerem algumas questões. É possível que seja exatamente a crise que leve tantas pessoas a lutarem pelas “economias” do Black Friday. Por outro lado, o volume de compras dessas pessoas reforça a hipótese de que o Black Friday seja mais um sinal da força da cultura de consumo que celebra a apropriação material enquanto confronta rituais básicos da chamada família americana. Rituais servem para reviver e provar a contínua importância de valores. Quando tais rituais são importantes, é comum que eles se tornem feriados exatamente para que obstáculos do cotidiano não interfiram com a prática e lembrança destes valores. Em inglês, a palavra "holiday" (feriado) vêm de "holly day" (dia sagrado), ou seja, celebra-se o ritual de Thanksgiving para que os valores sagrados da família sejam lembrados e fortalecidos. O nítido conflito entre Thanksgiving e Black Friday coloca a questão se outra categoria especia de dia deveria ser criada para representar rituais profanos: o Sinday (dia do pecado). Ou talvez para simplificar, poderíamos apenas questionar se, quando em choque, consumo é mais central do que família. Ou vai dizer que consumimos apenas para o bem-estar da nossa família?

Arranjando espaço para acomodar as compras de Black Friday

Por fim, antes tarde do que nunca, feliz ano novo a todos!

PS: passagens compradas para o Brasil em maio. Ficaremos de metade de maio até segunda quinzena de junho. Esperamos encontrar com tantas pessoas quanto pudermos :-).