Manhã de 11
de maio de 2012. Sentado - enquanto espero Sibele lavar o rosto no banheiro e calculo
o melhor momento de passar pela segurança do aeroporto e restringir pelas
próximas horas minha existência a uma cafeteria, uma livraria e um banheiro - observo
um homem negro, com 1,80 m de altura e uns 15 quilos acima do peso. Ele tem aquela
pele lustrosa que denuncia uma relação distante com a acne e uma relação íntima
com o sol tropical. Trajando aquele uniforme da polícia carioca que não é nem
cinza nem azul com a respetiva boina, ele se aproxima da área de acesso
restrito do embarque com a ginga preguiçosa e ritmada do Trapalhão Muçum. Se trocasse a farda por uma sunga, o caminhar seria o mesmo. Desengata
a faixa elástica daqueles bastões de alumínio que orientam as filas de banco e de aeroporto, passa
para a tal área restrita e recoloca a faixa. Ele puxa uma banqueta para sua
frente e a coloca naquela posição “sexy-agressiva”, com o encosto voltado pra
frente, como só strippers, cowboys e interrogadores do FBI fazem. Depois de
sacudir levemente a cadeira para testar sua estabilidade, ele inclina seu
tronco para frente e se debruça sobre o encosto, cruzando os antebraços em
direção ao chão, soltos no ar. Então ele, que talvez por um acaso da vida tenha
virado policial, pega um walk-talk do cinto com aquela confiança de quem tem a vida ganha, ajeita sua calça
(que mais parece uma roupa de cantor sertanejo ignorante - aquele que não é
universitário) para acomodar suas joias familiares e fala ao aparelhinho preto:
E aí banzé, comé que tá as coisa aí
embaixo?
Foi assim que
percebi que, dessa vez, depois de quase dois anos fora, o destino de viagem a ser observado era
a pátria amada, terra gentil. Figuraça esse lugar, onde se assume que todos estão
sempre loucos pra comer carne vermelha (ai que dó dos vegetarianos) e chamam
de salada um prato de batata picada com maionese. Lugar onde as pessoas
raramente transgridem o padrão de roupas ditado pela moda ou pela tradição,
onde menininhas pintam unhas de rosa e aquelas que já se sentem mulheres pintam
de vermelho. Lugar onde novelas ocupam quase 7 horas da programação diária da
Globo (sem contar o Video Show) e a TV serve como trilha sonora das noites da
família brasileira. Quando não é a
novela, é um jogo de futebol ou o DVD de algum show que acompanha a
multi-tarefa contínua do brasileiro de tocar a vida enquanto ouve TV. Terra
onde obras privadas avançam espantosamente (o que é aquela Arena do Grêmio em
Porto Alegre?!) e as públicas só ficam prontas quando não satisfazem mais às
necessidades às quais se propunham. Terra onde nem sempre se tira o notebook da
mala antes de passar pelo raio-x no aeroporto e onde a paranoia por segurança
não é tão grande, talvez porque a violência permeie tantas áreas que
controlá-la apenas no aeroporto, lugar habitualmente frequentado pela classe
não violenta, seria ofensivamente irônico. Lugar onde se abraça e se beija
estranhos na face, mas onde faixas de segurança são invisíveis e sinais amarelo
de trânsito parecem dizer “acelera para não parar no vermelho, seu mané”. Lugar
onde algumas coisas são tão caras (exceto pelo Seu João, sapateiro de Taquara
que cobra R$2 para pintar meticulosamente um par de sapatos, R$10 para trocar
forro de cadeira de praia, e para quem preço com centavos é coisa de fresco) que
uma das principais motivações para se viajar são as compras. No aeroporto de
Miami, o traje típico de viagem de um brasileiro retornando ao Brasil é um
tênis Nike reluzente com algum detalhe laranja, um relógio de pulso maior que
um relógio de bolso e uma camiseta pólo Tommy Hilfilger ainda com cheiro de nova.
O Brasil é
também onde está aquele pedaço fronteiriço de chão chamado Rio Grande onde,
como é típico de fronteiras, a permeação cultural desafia a artificial divisão
geográfica entre países. Um lugar que tem uma serra verdinha, uma umidade da qual até lesma quer fugir e cujo povo tem o hábito de compartilhar um chá
quente dentro de um recipiente amadeirado que é a caneca mais máscula e ao mesmo tempo fresca que um
chá poderia ter. Terra onde metade das
mulheres entre 16 e 40 anos faz luzes no cabelo (números informalmente
coletados por mim mesmo numa tarde no Shopping Iguatemi de Porto Alegre) e onde
dois terços das mulheres acima dos 60 anos escondem os fios grisalhos com algum tom
entre o cobre e o caju. Lugar onde se almoça ao meio-dia e, sempre que
possível, toma-se um delicioso café da tarde com cuca, salame, cacetinho e
requeijão. Terra onde os gordinhos se
orgulham de suas panças recheada de picanha e Polar e usam camisetas bem
grudadas que deixam o umbigo em alto relevo, onde o pessoal não hesita em
acender um fogo e assar um bicho para ofertar ao visitante (tivemos uma incrível média de
2 churrascos por semana). Lá no Rio Grande, a pessoa que não gosta de churrasco é porque nunca provou um bom de verdade!
O Rio
Grande também é a terra onde mamãe e titia prepararam uma festinha de 33 anos
(!) com direito a branquinho, “negrinho”, salgadinhos e bolo. Agora sou mais
velho do que maioria dos jogadores de futebol e comissários de bordo de voos
domésticos. Foi lá no Rio Grande onde pela primeira vez uma criança me pediu colo
(uma das sobrinhas rsrsrs) e onde o redemoinho de uma sobrinha e o olhar da
outra me fizeram sentir como se estivesse brincando com uma versão animada dos
meus irmãos que só havia visto nos álbuns de família.
Assim foram
as férias no Brasil, período em que respondi 45 vezes as perguntas “Onde vocês
estão mesmo?”, “Como é o tempo lá?”, ”E o churrasco?” e “Quanto tempo mais vocês
ficam lá?” dizendo, com algumas variações em função da intimidade, nível
alcoólico, e senso de humor do ouvinte, que “Estamos em Tucson, o mesmo nome da
camionete”, “O verão é terrível até para os lagartos, mas as outras estações
são ótimas”, “Churrasco é muuuuito bom, mas existe vida além do espeto” e “Sinceramente,
não sabemos.” Lidar com ambiguidade, aliás, não é fácil, já que nunca fomos elogiados
por responder “não sei”. Mas, a vida fica menos angustiante se a gente se
acostuma com a ideia de que a incerteza é parte das principais escolhas que
fazemos.
Forte
abraço aos que encontrei, aos que não consegui encontrar, e que todos os santos
ajudem o policial fã do Muçum e seus amigos a dar conta dos turistas estrangeiros que em breve nos visitarão.
7 comentários:
Muito bom tchê :)
Beijocas e te amo!
Que tal?
Até parece um paisano agauchado!
Há braços
Nique
Grande André.
Parabéns pelo post. No impacto da volta, mesmo que por pouco tempo, depois de dois anos fora, a gente olha pra nossa terra com outros olhos, melhores.
Abração!
Hermano
Fenomenal! Adorei. Beijos "titio Andrew". Hehe
Mas eu conheço está foto, "a cuia mais bonita, lembra Si" rsrsrs
Post fabuloso como sempre, parabéns querido!
Bom retorno a Tucson (a camionete).
Beijos!!
Hahahahahahaha!!!! Muito bom teu relato, Maciel, adorei!
Beijão
LuRodrigues, a única gaúcha que se nega a fazer luzes no cabelo.
"... a vida fica menos angustiante se a gente se acostuma com a ideia de que a incerteza é parte das principais escolhas que fazemos"
Mestre.
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